Brasileiro,
quem é esse?
No Dom, 24/01/2021 11:16, recebi o texto
abaixo, por email, onde o autor, Prof. Lago, fala sobre o “caráter médio do
brasileiro(a) comum”.
Vejamos:
Muito bom o texto abaixo.
Nele, o professor Lago mostra (com frieza e sem
romantismo) o quanto fomos enganados sobre a *“qualidade”* do caráter médio do
brasileiro(a) comum.
Segundo autor... ele é apenas um cretino.
Ponto de vista interessante.
DN
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*O brasileiro médio: um contraponto ao que diz
Suassuna*
Por Ivann Lago
Professor e Doutor em Sociologia Política
“O Brasil levará décadas para compreender o que
aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para
presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por
organização de ato terrorista; *deputado de sete mandatos conhecido não pelos
dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos*, mas pelas maquinações
do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e
envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da
escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de
preconceito que se pode listar.
Embora seu discurso seja de negação da “velha
política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de
pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais
inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero
discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão
pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as
eleições.
Pelo contrário, como pesquisador das relações entre
cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que
Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo
de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do
nosso país.
Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente
não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular,
do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me
à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas
pesquisas e minha experiência têm demonstrado.
No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso,
violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É
racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro,
desonesto.
Os avanços civilizatórios que o mundo viveu,
especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram
ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão,
de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em
diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de
valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de
comportamento.
O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as
manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população,
no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho,
nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários
entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de
que ninguém irá denunciá-lo.
O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em
relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se
manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente
de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por
isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de
conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.
Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas
relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por
superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos
instrumentos jurídicos e policiais.
Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano
é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia,
encontrará um modo de extravasar. (...)
Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro
médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos,
que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de
extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu
representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que
ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.
Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se
sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os
índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder
quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal
formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente
importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o
senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os
artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que
sua própria ignorância não permite compreender.
Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças
políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são
anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas
crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz
acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a
destruição de todos os opositores.
Ao assistir ao show de horrores diário produzido
pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou
pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que
vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de
dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu
mais profundo e mais verdadeiro.
O “brasileiro médio” não entende patavinas do
sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre
os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos
políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso
Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o
Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo
“cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias.
Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático,
mas condição necessária para fazê-lo funcionar.
Esse brasileiro não vai pra rua para defender um
governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria
mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por
outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá
sustentação ao governo que o representa.
O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a
autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres,
negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja
incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego
dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de
dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo
benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando
outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.
Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem
representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar
como é possível que um Presidente da República consiga ser tão
indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um
terço da população. A questão a ser respondida é: como milhões de
brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade,
intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-
se representados por tal governo?”
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