Repasso essa mensagem, da autoria do Frei Betto, que recebi pelo Whats
App
TAMANHO DA ARROGÂNCIA
Frei Betto
No início de julho, um fiscal da Vigilância
Sanitária exigiu que um casal do Rio seguisse os protocolos de prevenção à
Covid-19. Disse “Cidadão...” A mulher reagiu: “Cidadão não, engenheiro civil,
melhor do que você!” E se recusaram a adotar os procedimentos exigidos.
A arrogante senhora foi demitida, no dia
seguinte, da empresa na qual trabalhava. Se o fiscal Flávio Graça, que ali
cumpria o seu dever, retrucasse no mesmo tom, diria com autoridade que é
formado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense, doutorado
pela Universidade Federal Rural do RJ, coordenador de cursos de pós-graduação e
superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária,
Fiscalização e Controle de Zoonoses da prefeitura do Rio.
Poucos dias depois, em Santos, o
desembargador Eduardo Almeida Prado Siqueira foi multado por caminhar na praia
sem máscara, contrariando decreto da prefeitura. Chamou o guarda municipal de
“analfabeto”, ligou para o secretário de segurança do município para intimidar
o responsável pela multa, rasgou-a e jogou-a no chão.
Em Catalão (GO), no final de junho, um
comerciante de 76 anos foi agredido ao alertar um cliente da exigência de usar
máscara na loja. Fraturou o fêmur e ficará seis meses em cadeira de rodas.
Em abril, em Araucária (PR), um homem foi
impedido pelo segurança de entrar sem máscara no supermercado. Discutiram e
houve o disparo de um tiro, que matou uma funcionária do estabelecimento.
Essa arrogância entranhada em muitos
brasileiros tem raízes históricas. Foram 380 anos de escravatura em nosso país,
durante os quais os brancos tratavam os negros com um desrespeito que jamais
repetem ao lidar com seus animais de estimação. E, hoje, temos um presidente da
República que viola todos os protocolos de prevenção sanitária, dando péssimo
exemplo à nação.
Entre os vários sintomas do complexo de
superioridade, segundo o psicólogo Alfred Adler, criador da Psicologia do
Desenvolvimento Individual, manifestam-se o autoconvencimento, a atitude de
considerar os outros inferiores e apontar defeitos, a inveja, a busca de
reconhecimento, a excessiva preocupação com a opinião alheia, a falsa
autossegurança.
Educação vem do berço, dizia minha avó. Uma
criança que dá ordens na faxineira, humilha a cozinheira por não gostar de uma
comida, desrespeita a professora, está fadada a ser infeliz e fazer os outros
infelizes. Porque todo prepotente é amargo, irascível, preconceituoso.
Uma senhora branca saía do supermercado em
Brasília e, ao avistar um negro, pediu que ele empurrasse o carrinho de compras
até o estacionamento. Ele aquiesceu. Colocado tudo no porta-malas, ela lhe
estendeu uma gorjeta. Ele rejeitou com um sorriso: “Agradeço, senhora. Fiz por
gentileza.” Aconteceu com Vicentinho, deputado federal (PT-SP).
Quando eu me encontrava na Inglaterra, em
1987, um sobrinho da rainha Elizabeth II foi parado pela polícia rodoviária ao
dirigir em alta velocidade. “Sabe com quem você está falando?”, disse ao
guarda. “Quem você pensa que é?”, retrucou o policial. Por não trazer carteira
de habilitação, foi multado, e o carro, apreendido. Mais tarde, o juiz exigiu
que ele pedisse desculpas ao guarda.
Para Jesus, poder é servir: “O maior seja
como o mais novo, e quem governa, como aquele que serve” (Lucas 22,24). Mas
estamos longe de nos impregnar dessa cultura. Em um país com abissais
desigualdades sociais, os privilegiados tendem a se considerar muito superiores
aos marginalizados. As pessoas não importam. Importam os bens materiais que as
emolduram.
Em 2007, o violinista Joshua Bell deu um concerto
no Teatro de Boston, lotado de apreciadores que pagaram, no mínimo, 100 dólares
por ingresso. Dias depois, o jornal Washington Post decidiu testar a cultura
artística do público. Levou o violinista para a estação de metrô da capital
americana. Durante 45 minutos, ele tocou Bach, Schubert, Ponce e Massenet.
Eram oito horas de uma manhã fria. Milhares de
pessoas circulavam pelo metrô. Quatro minutos após iniciar o concerto
subterrâneo, o músico viu cair a seus pés seu primeiro dólar, atirado por uma
mulher que não parou. Quem mais lhe deu atenção foi um menino. Porém, a mãe o
arrastou, embora ele mantivesse o rosto virado para o violinista enquanto se
distanciava.
Durante todo o tempo do concerto, apenas sete
pessoas pararam um instante para escutar. Cerca de vinte, jogaram dinheiro sem
deter o passo. Ao todo, 32 dólares e 17 centavos a seus pés. Quando cessou a
música, ninguém aplaudiu.
Bell é considerado um dos melhores violinistas do
mundo. Mas nessa sociedade neoliberal hegemonizada pelo paradigma do mercado,
ele ali era um “produto” colocado na prateleira errada. Como se o fato de estar
em local público tornasse sua música de menos qualidade. Estivesse um músico
medíocre no palco do Teatro de Boston com certeza teria sido ovacionado.
Como disse Molière, “devemos olhar demoradamente
para nós próprios antes de pensar em julgar os outros.”
*Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre
outros livros.
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